segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

Trecho de 1808

Gomes, Laurentino. 1808. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2007.
Trecho de 1808
Na manhã de 29 de novembro de 1807, circulou a informação de que a rainha, o príncipe regente e toda a corte estavam fugindo para o Brasil sob a proteção da Marinha britânica. Nunca algo semelhante tinha acontecido na história de qualquer outro país europeu. Em tempos de guerra, reis e rainhas haviam sido destronados ou obrigados a se refugiar em territórios alheios, mas nenhum deles tinha ido tão longe a ponto de cruzar um oceano para viver e reinar do outro lado do mundo. Embora os europeus dominassem colônias imensas em diversos continentes, até aquele momento nenhum rei havia colocado os pés em seus territórios ultramarinos para uma simples visita — muito menos para ali morar e governar.
Era, portanto, um acontecimento sem precedentes tanto para os portugueses, que se achavam na condição de órfãos de sua monarquia da noite para o dia, como para os brasileiros, habituados até então a ser tratados como uma simples colônia extrativista de Portugal. No caso dos portugueses, além da surpresa da notícia, havia um fator que agravava a sensação de abandono. Sem o rei, o país ficava à míngua e sem rumo. Dele dependiam toda a atividade econômica, a sobrevivência das pessoas, o governo, a independência nacional e a própria razão de ser do Estado português.
Essa noção ajuda a explicar a sensação de desamparo e perda irreparável que os portugueses sentiram nas ruas de Lisboa naquela manhã fria do final do outono. Com a fuga do rei, Portugal deixava de ser Portugal, um país independente, com governo próprio. Passava a ser um território vazio e sem identidade. Seus habitantes ficavam entregues aos interesses e à cobiça de qualquer aventureiro que tivesse força para invadir suas cidades e assumir o trono.
Por que o rei fugia?
Antes de explicar a fuga, é importante esclarecer que, nessa época, o trono de Portugal não era ocupado por um rei, mas por um príncipe regente. D. João reinava em nome de sua mãe, D. Maria I. Declarada insana e incapaz de governar, a rainha vivia trancafiada no Palácio de Queluz, a cerca de dez quilômetros de Lisboa. Segundo filho da rainha louca, D. João não tinha sido educado para dirigir os destinos do país. Seu irmão mais velho e herdeiro natural do trono, D. José, havia morrido de varíola em 1788, aos 27 anos. Além de despreparado para reinar, D. João era um homem solitário às voltas com sérios problemas conjugais. Em 1807, fazia três anos que vivia separado da mulher, a princesa Carlota Joaquina, uma espanhola geniosa e mandona com quem tivera nove filhos, um dos quais havia morrido antes de completar um ano. O casal, que se odiava profundamente, dormia não apenas em camas separadas, mas em palácios diferentes e distantes um do outro. Carlota morava em Queluz, com a rainha louca. D. João, em Mafra, na companhia de centenas de frades e monges que viviam à custa da monarquia portuguesa.
Situado a cerca de trinta quilômetros de Lisboa, o Palácio de Mafra era um dos ícones dos tempos de glória e abundância do império colonial português. Mistura de palácio, igreja e convento, tinha 264 metros de fachada, 5200 portas e janelas e 114 sinos. O refeitório media cem metros de comprimento. Sua construção levou 34 anos e chegou a mobilizar 45 000 homens. O mármore tinha vindo da Itália. A madeira, do Brasil. Ficou pronto em 1750, no auge da produção de ouro e diamantes em Minas Gerais. Além dos aposentos da corte e de seus serviçais, havia trezentas celas usadas para alojar centenas de frades. Era nesse edifício gigantesco e sombrio que D. João passava seus dias longe da família, entre reuniões com os ministros do governo e missas, orações e cânticos religiosos.
O príncipe regente era tímido, supersticioso e feio. O principal traço de sua personalidade e que se refletia no trabalho, no entanto, era a indecisão. Espremido entre grupos com opiniões conflitantes, relutava até o último momento a fazer escolhas. As providências mais elementares do governo o atormentavam e angustiavam para além dos limites. Por isso, costumava delegar tudo aos ministros que o rodeavam. Em novembro de 1807, porém, D. João foi colocado contra a parede e obrigado a tomar a decisão mais importante da sua vida. A fuga para o Brasil foi resultado da pressão irresistível exercida sobre ele pelo maior gênio militar que o mundo havia conhecido desde os tempos dos césares do Império Romano: Napoleão Bonaparte.
Em 1807, o imperador francês era o senhor absoluto da Europa. Seus exércitos haviam colocado de joelhos todos os reis e rainhas do continente, numa sucessão de vitórias surpreendentes e brilhantes. Só não haviam conseguido subjugar a Inglaterra. Protegidos pelo Canal da Mancha, os ingleses tinham evitado o confronto direto em terra com as forças de Napoleão. Ao mesmo tempo, haviam se consolidado como os senhores dos mares na batalha de Trafalgar, em 1805, quando sua Marinha de guerra, sob o comando de Lord Nelson, destruiu, na entrada do Mediterrâneo, as esquadras combinadas da França e da Espanha. Napoleão reagiu decretando o bloqueio continental, medida que previa fechamento dos portos europeus ao comércio de produtos britânicos. Suas ordens foram imediatamente obedecidas por todos os países, com uma única exceção: o pequeno e desprotegido Portugal. Pressionado pela Inglaterra, sua tradicional aliada, D. João ainda relutava em ceder às exigências do imperador. Por essa razão, em novembro de 1807 tropas francesas marchavam em direção à fronteira de Portugal, prontas para invadir o país e destronar seu príncipe regente.
Encurralado entre as duas maiores potências econômicas e militares de sua época, D. João tinha pela frente duas alternativas amargas e excludentes. A primeira era ceder às pressões de Napoleão e aderir ao bloqueio continental. A segunda, aceitar a oferta dos aliados ingleses e embarcar para o Brasil levando junto a família real, a maior parte da nobreza, seus tesouros e todo o aparato do Estado. Aparentemente, era uma oferta generosa. Na prática, tratava-se de uma chantagem. Se D. João optasse pela primeira escolha e se curvasse às exigências de Napoleão, a Inglaterra repetiria em Portugal o que já havia feito, meses antes, na também relutante Dinamarca. Na manhã de 1o de setembro de 1807, os habitantes de Copenhague, a capital dinamarquesa, acordaram sob uma barragem de fogo despejada pelos canhões dos navios britânicos ancorados diante do seu porto. O bombardeio durou quatro dias e quatro noites. Ao final, 2000 pessoas estavam mortas. No dia 7, Copenhague capitulou. Os ingleses se apoderaram de todos os navios, materiais e munições, deixando a cidade sem defesas.
No caso de Portugal, as conseqüências poderiam ser ainda piores. Se o príncipe regente aderisse a Napoleão, os ingleses não só bombardeariam Lisboa e seqüestrariam a frota portuguesa como muito provavelmente tomariam suas colônias ultramarinas, das quais o país dependia para sobreviver. Com o apoio dos ingleses, o Brasil, a maior e mais rica dessas colônias, provavelmente declararia sua independência mais cedo do que se esperava, seguindo o exemplo dos Estados Unidos e de seus vizinhos territórios espanhóis. E, sem o Brasil, Portugal não seria nada.
Havia, obviamente, uma terceira alternativa, que sequer foi considerada por D. João. Seria permanecer em Portugal, enfrentar Napoleão e lutar ao lado dos ingleses na defesa do país, mesmo correndo o risco de perder o Trono e a Coroa. Os fatos mostrariam mais tarde que as chances de sucesso nesse caso eram grandes, mas, em 1807, essa opção não estava ao alcance do inseguro e medroso príncipe regente. Incapaz de resistir e enfrentar um inimigo que julgava muito mais poderoso decidiu fugir. “Preferindo abandonar a Europa, D. João procedeu com exato conhecimento de si mesmo”, escreveu o historiador Tobias Monteiro. “Sabendo-se incapaz de heroísmo, escolheu a solução pacífica de encabeçar o êxodo e procurar no morno torpor dos trópicos a tranqüilidade ou o ócio para que nasceu.