terça-feira, 6 de março de 2012

Mesopotâmia - Parte 2


Mesopotâmia (Parte 1)



DESMATAMENTO: OS SERTÕES

“Esquecemo-nos, todavia, de um agente geológico notável o homem. Este, de fato, não raro reage brutalmente sobre a terra e entre nós, nomeadamente, assumiu, em todo o decorrer da história, o papel de um terrível fazedor de desertos. Começou isto por um desastroso legado indígena. Na agricultura primitiva dos silvícolas era instrumento fun­damental o fogo. Entalhadas as árvores pelos machados de pedra; encoivarados, depois de secos, os ramos, alastravam-lhes por cima, crepitando abertura de roçado, a qual se ateia fogo, em bulcão de fumo, tangidas pelos ven­tos. Inscreviam, depois, nas cercas de troncos combustos das galhadas, a área em cinzas onde fora a mata exuberante. Cultivavam-na. Re­novavam o mesmo processo na estação seguinte, até que, de todo exaurida aquela mancha de terra fosse, imprestável, abandonada em caapuera mato extinto como o denúncia a etimologia tupi, jazendo dali por diante irremediavelmente estéril porque, por uma circunstância digna de nota, as famílias vegetais que surgiam subsecutivamente no terreno calcinado eram sempre de tipos arbustivos enfezados, de todo distintos dos da selva primitiva. O aborígine prosseguia abrindo novas roças, novas derrubadas, novas queimas, alargando o círculo dos estragos em novas caapueras, que ainda uma vez deixava para formar outras noutros pontos, aparecendo maninhas, num evolver enfezado, inaptas para reagir com os ele­mentos exteriores, agravando, à medida que se ampliavam, os ri­gores do próprio clima que as flagelava, e entretecidas de carrascais, afogadas em macegas, espelhando aqui o aspecto adoentado do mato espinhoso que nasce sinistra, além a braveza convulsiva da caatinga brancacenta”.
“Veio depois o colonizador e copiou o mesmo proceder. Engravesceu-o ainda com o adotar, exclusivo, no centro do país, fora da estreita faixa dos canaviais da costa, o regime francamente pastoril. Abriram-se desde o alvorecer do século XVII, nos sertões abusivamente sesmados, enormíssimos campos, compáscuos sem divisas, estendendo-se pelas chapadas em fora. Abria-os, de idêntico modo, o fogo livremente aceso, sem aceiros, avassalando largos espaços, solto nas lufadas violentas do nordeste”.
“Aliou-se-lhe ao mesmo tempo o sertanista ganancioso e bravo, em busca do silvícola e do ouro. Afogado nos recessos de uma flora estupenda que lhe escurentava as vistas e sombreava perigosamente as tocaias do tapuia e as tocas do canguçu temido, dilacerou-a golpeando-a de chamas, para desafogar os horizontes e destacar bem perceptíveis, tufando nos descampados limpos, as montanhas que o norteavam, balizando a marcha das bandeiras.Ora, estas selvatiquezas atravessaram toda a nossa história. Ainda em meados deste século, no atestar de velhos habitantes das povoações ribeirinhas do São Francisco, os exploradores que em 1830 avançaram, a partir da margem esquerda daquele rio, carregan­do em vasilhas de couro Indispensáveis provisões de água, tinham, na frente, alumiando-lhes a rota, abrindo-lhes a estrada e devastando a terra, o mesmo batedor sinistro, o incêndio. Durante meses segui­dos viu-se no poente, entrando pelas noites dentro, o reflexo rubro das queimadas.Imaginem-se os resultados de semelhante processo aplicado, sem variantes, no decorrer de séculos...”.
CUNHA, Euclides da. Os Sertões: Campanha de Canudos. São Paulo: Martin Claret, 2002.