Conteúdos Educacionais “Meu papel no mundo não é só o que de quem constata o que ocorre, mas também o que intervém como sujeito de ocorrências. Não sou apenas objeto da História, mas seu sujeito igualmente. No mundo da História, da cultura e da política, constato não para me adaptar, mas para mudar”. Paulo Freire
terça-feira, 6 de março de 2012
DESMATAMENTO: OS SERTÕES
“Esquecemo-nos, todavia, de um
agente geológico notável — o homem. Este, de fato, não raro reage brutalmente sobre a terra e entre
nós, nomeadamente, assumiu, em todo o decorrer da história, o papel de um
terrível fazedor de desertos. Começou isto por um desastroso legado indígena.
Na agricultura primitiva dos silvícolas era instrumento fundamental — o fogo. Entalhadas as árvores pelos machados de
pedra; encoivarados, depois de secos, os ramos, alastravam-lhes por cima,
crepitando abertura de roçado, a qual se ateia fogo, em bulcão de fumo, tangidas pelos
ventos. Inscreviam, depois, nas cercas de troncos combustos das galhadas, a área em cinzas onde fora a mata exuberante.
Cultivavam-na. Renovavam o mesmo processo na estação seguinte, até que, de
todo exaurida aquela mancha de terra fosse, imprestável, abandonada em caapuera — mato extinto — como o denúncia a etimologia tupi, jazendo dali por diante
irremediavelmente estéril porque, por uma circunstância digna de nota, as
famílias vegetais que surgiam subsecutivamente no terreno calcinado eram sempre
de tipos arbustivos enfezados, de todo distintos dos da selva primitiva. O
aborígine prosseguia abrindo novas roças, novas derrubadas, novas queimas,
alargando o círculo dos estragos em novas caapueras, que ainda uma vez deixava para
formar outras noutros pontos, aparecendo maninhas, num evolver enfezado,
inaptas para reagir com os elementos exteriores, agravando, à medida que se
ampliavam, os rigores do próprio clima que as flagelava, e entretecidas de
carrascais, afogadas em macegas, espelhando aqui o aspecto adoentado do mato
espinhoso que nasce sinistra, além a braveza convulsiva da caatinga brancacenta”.
“Veio depois o colonizador e copiou o mesmo proceder. Engravesceu-o ainda
com o adotar, exclusivo, no centro do país, fora da estreita faixa dos
canaviais da costa, o regime francamente pastoril. Abriram-se desde o alvorecer
do século XVII, nos sertões abusivamente sesmados, enormíssimos campos,
compáscuos sem divisas, estendendo-se pelas chapadas em fora. Abria-os, de
idêntico modo, o fogo livremente aceso, sem aceiros, avassalando largos
espaços, solto nas lufadas violentas do nordeste”.
“Aliou-se-lhe ao mesmo tempo o sertanista ganancioso e bravo, em busca do
silvícola e do ouro. Afogado nos recessos de uma flora estupenda que lhe
escurentava as vistas e sombreava perigosamente as tocaias do tapuia e as tocas
do canguçu temido, dilacerou-a golpeando-a de chamas, para desafogar os
horizontes e destacar bem perceptíveis, tufando nos descampados limpos, as
montanhas que o norteavam, balizando a marcha das bandeiras.Ora, estas selvatiquezas atravessaram toda a nossa história. Ainda em
meados deste século, no atestar de velhos habitantes das povoações ribeirinhas
do São Francisco, os exploradores que em 1830 avançaram, a partir da margem esquerda daquele rio, carregando em
vasilhas de couro Indispensáveis provisões de água, tinham, na frente,
alumiando-lhes a rota, abrindo-lhes a estrada e devastando a terra, o mesmo
batedor sinistro, o incêndio. Durante meses seguidos viu-se no poente,
entrando pelas noites dentro, o reflexo rubro das queimadas.Imaginem-se os resultados de
semelhante processo aplicado, sem variantes, no decorrer de séculos...”.
CUNHA, Euclides da. Os Sertões:
Campanha de Canudos. São Paulo: Martin Claret, 2002.
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